domingo, 18 de dezembro de 2016

É possível uma pessoa concordar com ideais feministas, mas se opor ao movimento militante feminista?

Reflexões acerca do feminismo

É preciso, primeiramente, fazermos uma diferenciação entre feminismo teórico e  feminismo prático. Para isso, uso o exemplo do Cristianismo. Para Álvaro Valls, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche faz uma crítica ao cristianismo, sem fazer nenhuma distinção, enquanto Kierkegaard, filósofo dinamarquês cristão, diferenciava Cristianismo de cristandade, podendo fazer críticas semelhantes ao cristianismo, sem, com isso, rejeitar o Cristianismo. Para Kierkegaard, eram coisas diferentes, e, não raras vezes, a cristandade não refletia o Cristianismo. Se considerarmos, por exemplo um pastor, que trabalha incentivando seus fiéis a fazerem grandes ofertas e ficando com esse montante, poderíamos chamar isso de cristandade; no entanto, isso não é Cristianismo, uma vez que a própria atitude do pastor é contrária aos ensinamentos cristãos. Assim, é possível se fazer uma crítica ao pastor, mas da crítica ao pastor, não pode, necessariamente, decorrer uma crítica ao Cristianismo. Ademais, um verdadeiro cristão, na medida que se aproxima de seguir o que para Kierkegaard seria o Verdadeiro Cristianismo, seria sempre crítico da cristandade.
Da mesma forma, existem, em meu ver, dois feminismos, acima citados. O feminismo teórico corresponde a um conjunto mais ou menos organizado de ideias que perpassam a questão da igualdade entre homens e mulheres, do ser sujeito em ambos e da voz e protagonismo social destes. O feminismo prático corresponde a um movimento real, de contestação e crítica, baseado em ideias do feminismo teórico e, não raro, se afastando desse.
É preciso, entretanto, se fazer uma distinção importante neste paralelo. Enquanto o Cristianismo assume um caráter absolutista, o feminismo teórico não o faz, não o pretende e nem o poderia. O Cristianismo se entende como Revelação Divina, ou seja, assume um caráter absoluto porquanto corresponderia a um conjunto de verdades externas ao sujeito e superiores às suas impressões individuais. Já o feminismo teórico, surge exatamente como fruto de impressões individuais humanas, ou seja, é produto de ideias humanas e não é superior em si e nem absoluto em relação ao outros produtos de racionalidade humana. Assim, poderíamos dizer que o Cristianismo não está sujeito às convicções subjetivas individuais, mas estas deveriam se adequar às suas proposições caso se reconheça que este é verdadeiro, dado que o Cristianismo é estritamente ou verdadeiro ou falso, considerando-se suas afirmações na medida em que correspondem à realidade (Deus existe, Deus ama a humanidade, Deus perdoa o Pecado, Deus envia Seu Filho ao Mundo...). No entanto, o feminismo teórico não é necessariamente verdadeiro ou falso, mas se faz verdadeiro ou falso à medida em que se aproxima ou afasta das convicções subjetivas de cada um. Portanto, as convicções não estão sujeitas ao feminismo, mas o contrário, sendo que este deveria ser moldado e definido de acordo com aquilo que é reconhecido como verdade por quem o pensa.
Assim sendo, o feminismo teórico não assume características muito bem definidas, mas corresponde a um espectro de ideias que intersectam em algum ponto. Por exemplo, no feminismo teórico, homens e mulheres deveriam ter maior igualdade na sociedade. Quanto? Totalmente, parcialmente...? Em relação ao que? A nada, a questões puramente biológicas, a questões filosóficas, questões sociais, morais etc? Isso vai depender de quem o pensa, em relação ás convicções no que o espírito deste está firmado. Mesmo assim, com algumas diferenças, há uma direção, e essa direção poderíamos chamar de espectro de ideias do feminismo teórico. Mesmo que as ideias sejam um pouco diferente, elas estão em um mesmo espectro e não são absolutamente contraditórias, pelo contrário, quanto mais nos aproximarmos de uma, nos aproximaremos da outra.

Pule este parágrafo chato! (ou leia só a primeira e a última frases)
É preciso ainda esclarecer que não entendo o feminismo teórico como um conjunto de ideias organizadas em relação à temática. Algumas coisas presentes nestas ideias organizadas nesta teoria (qual não deveria ser confundida com o feminismo teórico) podem estar mais comprometidas com o feminismo prático do que com ideias realmente refletidas e amplamente aceitáveis. A definição sempre é um trabalho dificultoso. Mas chamo de feminismo teórico aquelas ideias que fazem com que o movimento feminista seja considerável. Exemplo: alguém pode se entender feminista por acreditar que homens e mulheres são dignos de respeito e a violência por causa do sexo é inaceitável (sempre um esforço em se chegar a regras justas e não partidárias); mas ninguém deveria se "tornar feminista" por acreditar que o aborto deveria ser legalizado ou que mulheres deveriam ter o direito de usarem roupas que são consideradas "imorais" na sociedade, pois essas são questões secundárias e não principais. Talvez feminismo realmente não seja um bom termo para usar, e eu  o use justamente por preguiça de elaborar um termo para que ninguém o conheça. Seria muito trabalho para nada inventar algo como "sexoigualdadista" que realmente ficasse bom. Mas lembre-se que o que fundamenta o feminismo é justamente essa ideia de maior igualdade entre os sexos, portanto, não estou cometendo um grave erro. Resumindo: feminismo teórico é diferente de teoria feminista, pois teoria feminista é feminismo prático.

Isso nos leva ao feminismo prático.
São três as críticas que mentalizo sobre esse movimento: o feminismo prático se coloca como absoluto e supremo, o feminismo prático limita o feminismo teórico a um nível muito específico e o assume como lugar padrão, o feminismo prático impede um movimento feminista mais amplo, relevante e aceitável.
Uma das críticas a serem feitas ao feminismo prático é que este, como movimento, acaba por assumir um caráter em certa medida absolutista. Ou seja, não é o feminismo que deveria ser moldado pelas convicções, mas as convicções que deveriam se adequar ao que alguém (um grupo?) de alguma forma acha que é feminismo.
Vou dar um exemplo. Consideremos que eu, homem, heterossexual, cristão, sem posicionamento político definido (talvez até anti-partidário seja lá o que isso for), com determinada moralidade em relação à sexualidade, aborto e uso de drogas ilícitas, resolva me associar a um grupo feminista porque olhando para as ideias do feminismo teórico me sinto convencido de que deveria defender estes ideais. Ademais, consideremos que é justamente por causa destas minhas convicções que resolvo ser feminista. Primeiramente, o que é muito estranho, ir-se-há estranhar que eu participe deste grupo. São raros homens em movimentos do feminismo prático. Homens heterossexuais ainda mais. Homens heterossexuais cristãos e com uma moralidade cristão ainda mais. Mas logo que começo a participar dos grupos, movimentos, reuniões, manifestações, sei-eu-lá, terei minha fé questionada, minha moralidade questionada, meu posicionamento em relação ao uso de drogas questionado, em relação ao aborto etc. E não só questionados, contrapostos, na tentativa de desconstruí-los. A única coisa que não será questionada: os ideais feministas. Veja bem, no feminismo prático, não é o feminismo que se adequará às convicções, e sim o contrário: as convicções pessoais (aquilo que eu estou convencido que é verdadeiro, porque me foram mostradas razões suficientes para pensar que isto é assim e não diferente) devem se adequar ao feminismo.
Assim, por exemplo, muitas mulheres, sendo mulheres e reconhecendo que na sociedade atual existe desigualdade (desrespeito, violência... coisas que não são aceitáveis de acordo com o espectro de ideias do feminismo teórico) entre homens e mulheres, não se ligam a movimentos feministas. O feminismo prático contemporâneo se afasta bastante do teórico - considerando-se como teórico o que fundamentaria e definiria a prática e não o que é fundamentado e definido pela prática. É possível se observar em manifestações do feminismo prático desrespeito para com os homens. Ora, no feminismo teórico homens e mulheres não deveriam ser desrespeitados por questão do seu sexo. Logo, em muitos casos, o feminismo prático é contra o feminismo teórico.
Muitas pessoas até concordam com ideias do feminismo teórico. Todavia, discordam de algumas posições específicas do feminismo prático que não definem o feminismo (as são tomadas como se definissem). Logo, além de lutar a favor de ideias feministas genuínas, têm que lutar contra ideias das quais individualmente discordam. Ou seja, por causa de um feminismo específico ampliado para o geral, muitas pessoas "feministas (teóricas)" terão que lutar contra o feminismo (prático). Isso sem citar as pessoas que não pensaram se concordam ou não com as questões básicas do espectro de ideias do feminismo teórico, porém discordam categoricamente de algumas questões levantadas como centrais pelo feminismo prático, que jamais (a menos que sejam muito cuidadosos, honestos, curiosos etc) irão olhar com bons olhos para as ideias feministas. Ou seja, na maioria das vezes, o feminismo prático mais atrapalha do que ajuda a garantir avanços reais para as mulheres - e a sociedade indiretamente.

É possível uma pessoa concordar com ideais feministas, mas se opor ao movimento militante feminista? Acredito que sim. Da mesma forma que acredito que alguém pode ser crítico da cristandade e mesmo assim ser crente no Cristianismo.

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